terça-feira, 26 de dezembro de 2017

A teoria do milenarismo teve suas raízes na literatura judaica


“O Anticristo terá a pretensão de impor a seus súditos um rito análogo ao do batismo, onde os novos cristãos são marcados na fronte com o selo de Jesus Cristo. Todos estes servidores permanecem fiéis a Deus apesar da perseguição, são mortos, é verdade, aos olhos dos homens: mas, na realidade, havendo franqueado as portas de outro mundo, eles encontraram, na união de sua alma com seu Criador, uma vida nova muito mais perfeita que a daqui embaixo. E eles reinaram mil anos com Cristo.
Estas últimas palavras requerem algumas explicações, pois é por elas que se introduziu a doutrina chamada de milenarismo; doutrina rejeitada pela Igreja há séculos e que no entanto vê, de vez em quando, levantarem-se novos campeões a seu favor, sob o falaz pretexto de contar com a opinião favorável de vários Padres autenticamente ortodoxos. Seus partidários, os milenaristas, chamados também quiliastas, sustentam que, antes do dia da ressurreição geral, os justos retomarão seus corpos e, ressuscitados, reinarão mil anos nesta terra, na Jerusalém restaurada, com Cristo. Depois virá a segunda revolta de Satanás, o combate supremo contra a Igreja levado a cabo por Gog e Magog, a aniquilação dos rebeldes por Deus, e finalmente a ressurreição universal seguida do Juízo final. Haveria assim duas ressurreições sucessivas, separadas por um intervalo de mil anos: a dos mártires primeiro, depois o restante da humanidade.
A teoria do milenarismo teve suas raízes na literatura judaica, obcecada sempre com a idéia de um Messias reinando gloriosamente sobre a terra. Retomada, no tempo de São João, pelo heresiarca Cerinto, é exato que nos séculos II e III da era cristã, alguns Padres, e não os menores, o adotaram sob formas diversas e mais ou menos atenuadas. Podemos citar entre eles São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, etc...
Mas o parecer destes escritores não pode de nenhuma maneira ser visto como representativo da crença da Igreja: para que o testemunho de vários Padres possa ser considerado como a expressão da Tradição católica, é necessário, dizem os teólogos, “que não seja impugnado por outros”. Esta condição não existe neste caso: o mesmo São Justino reconheceu que a teoria milenarista estava longe de ser admitida por todos; Orígenes a reprovou e a tratou de necedade judaica. São Jerônimo rompeu deliberadamente com ela:
Nós não esperamos, escreveu, com as fábulas que os judeus decoram com o nome de tradições, que uma Jerusalém de pérolas e de ouro desça do céu; nós não nos submeteremos de novo à injúria da circuncisão, a oferecer carneiros e touros como vítimas, e a dormir na ociosidade do Sabá. Há muitos de nós que levaram a sério estas promessas, notavelmente Tertuliano em seu livro intitulado Da esperança dos fiéis; Lactâncio, em seu sétimo livro das Instituições; o bispo Vitorino, de Pettau, em numerosas dissertações e, ultimamente, nosso Sulpício Severo no diálogo ao qual deu o nome de Gallus. Quanto aos gregos, cito o primeiro e o último, Irineu e Apolinário.
Santo Agostinho pronunciou-se no mesmo sentido: se a princípio tem certas dúvidas, em seguida o vemos, em A Cidade de Deus, condenar claramente o quiliasmo, e esta opinião é a que prevaleceu a partir de então, tanto no Oriente como no Ocidente, na Igreja. A partir do século IV, não encontramos nenhum escritor católico digno de consideração que defenda o milenarismo, e o parecer unânime dos teólogos, entre os mais importantes Santo Tomás e São Boaventura, o descarta resolutamente.
Sem dúvida, na Idade Média, escreve o Padre Allo, Joaquim de Fiore e sua escola ensinaram uma doutrina que era uma espécie de milenarismo espiritual, mas que não se deve confundir com o quiliasmo antigo. Este não perseverou mais que em certos luteranos ou nas obscuras seitas protestantes; bem raros são os exegetas católicos que se esforçam em renová-lo sob uma forma atenuada e conciliável com a ortodoxia. Ainda que o quiliasmo não tenha sido qualificado como heresia, o parecer comum dos teólogos de todas as escolas vê nele uma doutrina errônea à qual certas condições dos tempos primitivos puderam arrastar alguns antigos Padres.
A expressão: E eles reinaram mil anos com Cristo deve então, como já o indicamos, entender-se em um sentido místico. Os mil anos designam todo o período compreendido entre o dia em que Cristo, por sua Ressurreição, abriu o reino dos céus, franqueando as portas com sua Santíssima Humanidade, e o dia que, graças à ressurreição geral, os corpos dos eleitos entrarão nele. Mas as almas dos bem-aventurados já estão ali, estreitamente unidas Àquele que é sua verdadeira vida; elas participam da glória de Cristo, elas constituem sua corte, elas reinam com Ele.
(…) Em que consiste esta primeira ressurreição? Em sair, pela penitência, do estado de pecado, em afastar-se da morte espiritual, a recuperar a vida da graça. Todos aqueles que saibam tomar parte nela e perseverar serão um dia bem-aventurados e santos: bem-aventurados porque eles obterão a beatitude saindo deste mundo; santos, porque eles serão estabelecidos e confirmados na glória, de tal maneira que a segunda morte, ou seja, a condenação eterna, não terá nenhum poder sobre eles. Eles serão os sacerdotes de Deus e de Cristo, eles oferecerão sem cessar o sacrifício de louvor a Deus autor de todo bem, e ao mesmo tempo a Cristo, agente de nossa Redenção; e suas almas reinarão no céu com Ele durante mil anos, ou seja: até o dia em que seus corpos lhes serão devolvidos.”
(Dom Jean de Monléon, O.S.B, Le Sens Mystique de l’Apocalypse)