terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Martin Heidegger e o nazismo (I)

“Embora volumosa, a literatura sobre o envolvimento de Heidegger com o nazismo não parece insistir sobre as duas questões que precisam ser formuladas. O que é que relaciona a ontologia fundamental de Sein und Zeit com esse envolvimento, se é que tal relacionamento existe? O que é que pode ser dito para explicar o total silêncio público de Heidegger (com uma escassa exceção póstuma), depois de 1945, a respeito do holocausto e de suas próprias atitudes em relação à política e às bestialidades do Reich? A restrição a “público” pode ser relevante ou não; pode ser que existam ou não pronunciamentos privados no arquivo, por exemplo, na correspondência com Hannah Arendt.
Abrir caminho através do material pertinente é um trabalho ingrato. Na medida em que podem ser reconstituídos, os fatos são estes.
Em abril de 1933, o Professor von Möllendorf, um social-democrata, foi impedido de assumir a reitoria da universidade de Freiburgo. Ele, com seus colegas mais antigos, pediram a Heidegger que assumisse o cargo. A sua fama podia ser de uso salutar para a universidade em tempos ameaçadores. Heidegger não pertence a nenhum partido e não teve qualquer papel na política. Ele hesita, mas é persuadido. Heidegger foi eleito reitor com um único voto discordante e tomou posse a 21 de abril. Esse ato equivale a tornar-se um funcionário sob o novo regime e ele filia-se ao Partido Nacional-Socialista nos primeiros dias de maio. Logo no início de seu reitorado, Heidegger proíbe a disseminação de folhetos anti-semíticos por estudantes nazistas nos edifícios da universidade. Proíbe uma programada queima de livros “decadentes”, “judaicos” e “bolchevistas” em frente da universidade e tenta impedir o expurgo de volumes “indesejáveis” da biblioteca da universidade. É mais ou menos neste ponto que chegamos a um dos mais notórios itens de todo o dossiê: a alegada autorização de Heidegger para que fosse interditado o uso da biblioteca pelo seu mestre e predecessor “não-ariano”, Edmund Husserl. Até onde chegam meus conhecimentos, tal autorização nunca foi expedida. Se os dois homens não se viam um ao outro nesses dias sombrios e conturbados, a razão estava em que eles já se haviam afastado por motivos pessoais e filosóficos (a omissão de Heidegger, não intervindo positiva e publicamente a favor de Husserl é, evidentemente, uma outra questão muito diferente).
Recusando-se a ratificar a demissão de dois decanos da universidade, os antinazistas Wolf e von Möllendorf, Heidegger renuncia ao reitorado em fins de fevereiro de 1934. É vital recordar que Hitler só assumirá o completo domínio do Estado em 19 de agosto de 1934, após a morte de Hindenburgo. Ao exonerar-se, ou imediatamente depois, Heidegger deixa o partido. Os sabujos nazistas, como o Professor Ernst Krieck, denunciam agora Heidegger como um obscurantista cuja visão do mundo, apesar de aparências momentâneas, é o completo oposto da do Führer. Existem algumas provas de que as aulas de Heidegger, sobretudo sobre Nietzsche, estão sob vigilância a partir do semestre do inverno de 1934-35 em diante. Uma nova edição de Sein und Zeit é publicada em 1942. A dedicatória a Edmund Husserl é omitida. Até onde pude averiguar, foi o editor que insistiu nessa omissão, sem a qual a publicação do livro não seria permitida. Todas as referências elogiosas a Husserl, incluindo a famosa nota de rodapé da página 38, permanecem como antes. No verão de 1944, as autoridades universitárias declaram Heidegger “o professor cujos serviços podem ser mais facilmente dispensados”. Em conseqüência disso, Heidegger é enviado para um período de trabalho compulsório na construção de entrincheiramentos nas margens do Reno. Dá sua aula final de 8 de novembro de 1944. As potências aliadas proíbem Heidegger de lecionar. Essa interdição vigora de 1945 a 1951.
Os textos-chaves para esse período são o discurso de Heidegger a colegas e estudantes por ocasião da cerimônia de juramento de fidelidade ao novo regime, em março de 1933; a sua lição de sapiência como reitor sobre a “Autodeterminação da Universidade Alemã”, em maio de 1933; a sua declaração de apoio ao referendo de 12 de novembro de 1944, em que Hitler conclamou a Alemanha a ratificar a saída da Liga das Nações; a comemoração por Heidegger, a 1° de junho de 1933, da morte de Albert Leo Schlageter, um mártir nacionalista executado pelas forças francesas de ocupação no Ruhr; o discurso sobre “Serviço de Mão-de-Obra e Universidade”, de 20 de junho de 1933, e o estreitamento afim “Ruf zum Arbeitsdienst” (“Convocação para os Batalhões de Trabalho”), de 23 de janeiro de 1934. Um outro documento é fornecido por uma foto do Reitor Heidegger, rodeado de oficiais e capangas nazistas uniformizados, numa celebração de recusa e vingança no Dia do Armistício de 1933.
Se observarmos esses textos e os pronunciamentos mais breves que foram feitos durante o reitorado de Heidegger, não pode haver qualquer dúvida; é a prova ignóbil, túrgida e brutal em que o jargão oficial da época se mistura de forma inconsútil com o idioma de Heidegger, em sua expressão mais hipnótica. O Volk recuperou a “verdade” de sua “vontade de ser”, de seu Daseinswillen. O gênio de Hitler conduziu seu povo para fora das idolatrias e corrupções do “pensamento sem raízes e impotente”. A revolução nacional-socialista é que habilitará os filósofos, agora reunidos ao povo (Volk) como um todo, a retornarem com “implacável clareza” (uma expressão característica do idioma ontológico-nazista) à questão do significado da existência humana. É “privilégio supremo” da comunidade acadêmica servir a vontade nacional. A única justificação para “a chamada ‘mão-de-obra’” é o investimento dessa mão-de-obra nas necessidades e nos objetivos históricos e nacionais donde ela promana. Para um estudante universitário, ingressar nos batalhões de trabalho do novo Reich não é um desperdício ou uma traição à sua vocação. Pelo contrário, é dar a essa vocação seus alicerces éticos e sociais sem o que, como Sein und Zeit mostrou, não pode haver destino autêntico.
Ao romper com o passado, ao esmagar a pseudo-irmandade da Liga das Nações, ao entregar-se “à guarda do Führer e do movimento histórico mundial que ele encarna”, a Alemanha está exemplificando, como nenhum outro povo jamais fez, aquela projeção do ser para o futuro, que é o ato supremo de autenticação. (A afinidade do vocábulo com o da Parte III de Sein und Zeit é orgânica.) Um plebiscito a favor de Hitler é “um voto para o futuro” – um futuro que é o “mais verdadeiro” por ser a herança há muito esperada, o ser-passado (Erbe e Gewesenheit) do povo alemão. “O próprio Führer”, proclama Heidegger no Freiburger Studenten Zeitung, de 3 de novembro de 1933, “é a única consubstanciação atual e consubstanciação futura da ação alemã e sua lei”. Opor-se ao Führer seria uma traição contra o ser.
Entretanto, deve-se assinalar que existem, no meio dessas brutais impudências e servilismos, certas “indiretas” veladas mas persistentes. O discurso na cerimônia de juramento de lealdade fala de um sistema que “rechaçará a lei da força”. O notório Rektorats-Rede contém sugestões de que a revolução que está sendo aclamada é, ou deve tornar-se, uma revolução de essência espiritual, mais do que política, em seu sentido normal. O ataque contra a Liga das Nações reclama a necessidade de uma concepção muito mais profunda de paz entre os povos, de que todas as nações, não só a Alemanha, devem encontrar para si mesmas a grandeza e a verdade de seu Bestimmung (sua “determinação”, de sua “missão através de sua vocação”). Examinadas minuciosamente, numerosas passagens-chaves dissolvem-se numa curiosa névoa de quietismo que as coloca, de algum modo, do outro lado da política.
A Introdução à Metafísica, de Heidegger, remonta às preleções proferidas em 1935. Heidegger reedita o trabalho em 1953. Conserva a seguinte afirmação:
As obras que estão sendo hoje em dia impingidas como a filosofia do Nacional-Socialismo – mas nada têm a ver com a verdade essencial e a grandeza desse movimento (a saber, o encontro entre tecnologia global e homem moderno) – foram todas escritas por homens pescando nas águas turvas de “valores” e “totalidades”.
Assim, a “verdade essencial e a grandeza” do movimento nazista continua sendo afirmada. Como R. Minder mostrou, o estudo de Heidegger sobre Hebel, Dichter in der Gesellschaft (“O Poeta em Sua Sociedade”), de 1966, está repleto de jargão nazista de Blut und Boden e de alusões à missão sacrossanta do Volk. A 23 de setembro de 1966, Martin Heidegger deu uma extensa entrevista à revista Der Spiegel (um foro singularmente trivializante...), na condição de que fosse publicada postumamente. Ela saiu em junho de 1976. É magistral em sua urbanidade felina e evasões. Heidegger reconhece que não via nenhuma alternativa para o nazismo em 1933, se a Alemanha quisesse sobreviver. Mas antes que as suas declarações mais grosseiras de 1933-34 fossem julgadas, elas deviam ser “meditadas em profundidade”. Quando ele pedia uma auto-renovação das universidades alemãs sob a égide do partido, não era a segunda parte que devia ser enfatizada mas as conotações ontológicas de auto (selbst). Os compromissos, os acomodamentos conciliatórios na fraseologia e na postura pública eram inevitáveis, caso se quisesse que a educação superior fosse salvaguardada. Fossem quais fossem suas lamentáveis divergências pessoais, Heidegger continuava apoiando-se nos ensinamentos de Husserl em suas próprias exposições de fenomenologia. As conferências sobre Hölderlin de 1934-35, o seminário sobre Nietzsche de 1936, “espionado por informantes oficiais”, deviam, em essência, ser consideradas como uma contestação codificada e uma confrontação polêmica com o nazismo (eine Aussein-andersetzung). O que os recatados entrevistadores não perguntaram foi isto: existe em qualquer ponto da obra de Heidegger um repúdio ao nazismo, existe em qualquer texto, de 1945 até sua morte, uma única sílaba que seja sobre as realidades, sobre as implicações filosóficas do mundo de Auschwitz? Estas são as perguntas que contam. E a resposta teria que ser: “Não”.”
(George Steiner, Heidegger)

Tradução de Álvaro Cabral